sábado, 25 de agosto de 2012

Alemão - Parte I


Se você tem alguma religião, e em consequência acredita em paraíso, vida eterna, essas coisas, diga lá: pode haver céu e eternidade felizes sem cães, gatos, cavalos e outros animais? Pode haver um paraíso sem nascer e pôr do sol, e, em os tendo, podem eles acontecer sem o canto dos pássaros? Pode um paraíso ser alegre apenas com o dedilhar de anjos em suas pequenas harpas? Mas que chatice! Então me responda: por que não se reza pelos cães? Por que não se admite que, se for para existir esta coisa chamada “alma”, forçoso é admitir que todo ser vivo terá direito a ela, das baleias ao musgo, passando, é claro, pelo cães. Mas não se reza pelos animais, não, pelo menos, na vida adulta. As crianças, tenho certeza, serão muito mais capazes de rezar por seus animais do que por muitos parentes que se vão.

Conheci o Alemão faz quatro anos. Na época ele era um cão forte, orgulhoso, poderoso. Viva em torno da esquina das ruas Duque de Caxias e Cipriano Ferreira, depois de ter passado uma temporada na Riachuelo. O motivo da mudança era evidente: se apaixonou por Tanise, e transferiu-se para a frente de sua casa. Da amada e de sua mãe, Maria Helena, ganhava água, comida e pouso: à noite, tinha acesso à garagem, onde dormia protegido das intempéries e da “maldade humana”. Só não podia frequentar o resto da casa porque essa era território de uma poodle ciumenta, que não admitia visita de estranhos.

 O tempo em que viveu ali (e onde foram batidas as duas fotos que acompanham este texto), Alemão manteve a paixão, mas nunca foi um exemplo de fidelidade. Era um rabo de saia convicto. Fugia de homens estranhos, mas saia atrás de qualquer mulher que lhe oferecesse a promessa de um sorriso. Foi assim com Ânia, a minha. Voltando da academia, um dia cruzou com Alemão, falou com ele e pronto: ficaram amigos. Chegando em casa, ela me contou do rival e, de pronto, fui conhecê-lo. Latiu para mim, me evitou, não me deixou chegar perto. Mas sou paciente.

 As próximas semanas foram dedicadas a um lento processo de aproximação. Ração seca? Não gostava. Biscoito para cães? Refugava. Ração úmida. Ah! Esta ele cheirava, sentava junto, e até comia, mas nunca de minha mão. Precisava deixá-la no canto do pratinho da Tanise, ir embora e supor, quando voltava depois de um tempo, que o sumiço dela significava que ele havia comido. Certeza nunca tive. Naquela época, saí pela zona tentando descobrir sua origem. Vira-latas de rua não era, não podia ser. Então surgiram várias histórias.

Algumas: seu dono era um velhinho que havia morrido. Pouco provável, dado à sua desconfiança dos homens. Então sua dona era uma velhinha que havia morrido. Mas também não era provável, pois era um cão muito acostumado a andar na rua, e nesse caso, seria conhecido. E ele havia aparecido de um dia para o outro na Riachuelo. Teria fugido de casa? O mesmo problema, fosse assim seria conhecido de alguém na região, e os cartazes distribuídos não deram resultado. Então, um menino que um dia assistia da esquina minhas peripécias para atrair Alemão com guloseimas caninas me disse:

- Conheço este cachorro.

 Ora viva!

Ele me contou então que, há algum tempo, um caminhonetão desses grandes havia parado na frente do Colégio das Dores, pouco antes do horário de saída, jogado fora o cachorro e ido embora. Disse que vários colegas haviam assistido à cena e que o cachorro havia corrido atrás do carro, mas depois voltado para a frente do colégio. Fui verificar e mais dois alunos, um deles mais velho, já do segundo grau me confirmaram o havido. Nenhum dos guardas ou motoristas de transporte escolar tinha visto coisa alguma. Mas na falta de provas de qualquer das versões, esta ficou sendo a minha preferida. É a mais parecida com o comportamento humano dominante.

Só consegui conquistar a plena amizade do Alemão lá por outubro de 2009. Foi num sábado quente. Cheguei em casa e fui ver se estava em seu local de sempre. Estava. Me aproximei conversando, ele veio me cumprimentar, mas não ficou perto. Fui para casa. Logo depois desabou um daqueles temporais de chacoalhar a cidade e lembrei dele, naquele temporal, pois a casa de Tanise havia me parecido vazia. Peguei um pacote de comida e fui para lá. Debaixo da maior chuva, sentei no cordão da calçada e o chamei. Ele veio. Ofereci um biscoto. Ele cheirou mas não comeu. Dei uma mordida e ofereci de novo. Ele mordeu. E ali ficamos até a chuva passar, comendo biscoitos para cães, para espanto dos motoristas que passavam. Ficamos amigos.

Convém esclarecer que eu não era o único. Àquela altura todo mundo na zona já conhecia o Alemão, e lhe dava coisas. Às mulheres, ele agradecia festivamente, aos homens, com circunspecção. Além de mim, outro homem de quem gostava era do pai da Tanise, ao qual seguia em suas caminhadas pelo centro até ser mandado de volta. Então voltava para casa, estivesse onde estivesse. Por esta época, descobriu-se que além das paixões fugazes tinha um outro amor estabelecido. Iara morava na General Alto. Ele também ficava na frente de sua casa, onde recebia água e comida. Ele também era apaixonado por ela. E, notável, durante muito tempo nenhuma das duas – Iara e Tanise – desconfiou da existência da outra, apesar das duas casas ficarem a menos de três quadras uma da outra. Mas Iara tinha em casa uma cachorrinha ciumenta, e ele não podia entrar. Mas a esta altura nem parecia querer. Adorava a liberdade e dava grandes passeios.

Então, no início de janeiro de 2010, logo depois do ano novo, Alemão ficou doente, muito doente. Ficou prostrado, não comia, orelhas e cauda caídas, nariz quente, o quadro da dor. A nós, leigos, parecia intoxicação, pois muita gente havia dado a ele restos da ceia de ano novo, e algumas dessas coisas haviam ficado ao sol por muito tempo. Tanise o deixou preso na garagem e chamou uma veterinária. Ela deu-lhe uma injeção, mas recomendou internação. E disse que, provavelmente, seria um problema renal. No dia seguinte, o pusemos no carro, carregado no colo de Tenise, para entrar, e o levamos para uma clínica. Ficou lá de 4 a 11 de janeiro, e o veterinário (do qual não cito o nome porque a clínica fechou ou se mudou e perdi contato) confirmou o diagnóstico de problema renal. E avisou:

- É crônico, não tem cura. Vão ocorrer outras crises e ele irá piorando. Teria que tomar medicação permanente e controlar a alimentação para estabilizar o quadro. Na rua isso é impossível. E mesmo em casa é difícil. Talvez ele já tenha tido uma crise dessas, e talvez por isso seu dono original o tenha posto fora.
O tempo todo em que ficou internado, visitei Alemão todos os dias, menos no domingo, último dia, pois neste visitas não eram permitidas. Brincamos, levei presentes, “conversamos”. Na segunda, quando fui buscá-lo tinha tomado banho e ele estava em uma geringonça de secar cães que mais parecia uma máquina do tempo. Lá dentro, após ter sido lavado e esfregado, e submetido a vento e barulho, estava... assustado? Nada. Imperial e imperturbável como sempre. Apenas me olhou e sussurrou com os olhos:

- Me tira daqui.

Naquele momento, tinha mais pompa e circunstância do que qualquer Akita com linha de ascendência registrada em uma biblioteca de pedigrees. E revelava, na expressão, toda a imensidão de seu bom caráter, que fazia com que nunca tivesse avançado, nem (muito menos) ameaçado ou mordido alguém, em seus tempos de rua.

Paguei a conta, ganhei uma guia e uma coleira usadas, mas muito bonitas para retirá-lo de lá (tinha ido no colo, lembram?) e o levei até o carro. E então, problemas: ele não gostava de andar de carro. Detestava. E eu tinha ido sozinho. Como colocá-lo para dentro, agora novamente forte e vigoroso? Puxa daqui, puxa dali, ele acabou por colocar as duas patas da frente e tirar a coleira para fora. Saiu correndo pela rua (Barão do Amazonas, quase esquina Bento Gonçalves) em direção à Ipiranga. Fui atrás. Consegui pegá-lo três quadras depois. O segurei pelo pescoço, uma mão de cada lado, e fiquei cara a cara com ele, jogado no chão. Impasse. Não tinha como recolocar a coleira, se soltasse uma das mãos ele fugiria. Pedi ajuda (esta na frente de uma garagem de ônibus, cheia de motoristas na frente). Todo mundo olhou o tamanho do cachorro e ninguém veio. E assim ficamos.

Devem ter sido segundos, me pareceram horas. Então ele me olhou nos olhos, virou o focinho para o lado e prendeu meu braço direito com os dentes, delicadamente. Não mordeu. Soltou e me olhou nos olhos (pertinho, uns 20 cm. de distância, literalmente olhos nos olhos). Repetiu o processo exatas quatro vezes. Nunca mordeu, nem sequer arranhou. Então me olhou outra vez, deu um safanão mais forte, virou o focinho um pouco mais, pegou minha mão na parte carnuda e mordeu.

Mordeu com cuidado, se fosse com raiva, naquele lugar, teria arrancado um baita pedaço. Mas, apesar de mal ter furado, mão é mão, tive um baita sangramento. Soltei. Ele fugiu para a Ipiranga. Na esquina, parou e me olhou. Depois, foi embora. Voltei ao veterinário, que fez um primeiro curativo, e fui para o pronto socorro levar pontos, fazer a anti-tetânica e ser encaminhado ao posto de saúde para fazer a antirábica. Quando cheguei em casa, duas horas depois (no auge do pique de trânsito), ele já estava lá. Havia percorrido quase dez quilômetros do pior trânsito da cidade e estava lá. Quando me viu, veio, cabeça baixa, lamber minha mão enfaixada. Nunca mais lambeu a outra, sempre a que havia mordido. Viramos irmãos de sangue. Pelo menos do meu sangue.

Alemão - Parte II


Por pouco tempo tudo voltou à antiga rotina. O que mudou as coisas foi uma dupla de vira-latas que, sabe-se lá como, cruzou pela vida do Alemão. Um macho e uma fêmea, cada um mais feio que o outro, mas “bons amigos de fé, irmãos, camaradas”. Vinham todo o dia, de manhã, e esperavam que a porta da garagem fosse aberta e ele saísse para a rua. Com eles foi que Alemão aprendeu uma das maiores especialidades do clã dos vira-latas: correr, latindo, atrás dos pneus dos carros. Passou a dedicar-se a isso com extremo afinco e grande habilidade. As pessoas da zona, que gostavam dele, não gostaram tanto dos novos amigos, “vira-latas demais, e feios” para a maioria. E tanto fizeram que um dia eles sumiram. Alemão deprimiu. Nunca mais correu atrás de carros, mas deu para sumir por dias. Muitas vezes sai a procurar por ele, seguindo indicações de pessoas que garantiam tê-lo visto nos mais variados locais.

Uma ou duas vezes (Redenção e IAPI) consegui achá-lo. Interessante. Bastava então fazer-lhe um cafuné depois dizer: - "Pra casa", que ele voltava; para a frente da casa da Tanise, é claro. Outras vezes, achei apenas seu rastro. Por onde andasse, fazia amigos, então bastava chegar ao lugar certo e perguntar pelo cachorro legal que estaria andando por ali e logo surgia alguém com a descrição exata dele. Alguns desses lugares: na frente do Hospital Getúlio Vargas (na Avenida Independência), onde frequentou a banca de revistas; no cruzamento da Free-Way com a estrada que vai para Cachoeirinha (ganhou pouso num barracão de venda de abacaxi e lenha); em Alvorada (comeu cachorro quente na avenida central) e em Ipanema (parece que andou visitando o Bat-Bat, mas não bebia). No entanto, sempre voltava.

Em setembro de 2010 morou no Acampamento Farroupilha, no Parque Maurício Sirotsky. Comeu carne e sal como nunca deveria ter comido. Ficou doente outra vez. Foi tratado em casa, dessa vez, e antes de ficar completamente curado, sumiu. Sumiu. Fui reencontrá-lo no canteiro de obras que havia se instalado no mesmo parque. Devia estar esperando que os farroupilhas voltassem para se empanturrar de carne outra vez. Consegui falar com ele, mas quando o mandei pra casa, ele deu as costas e rumou para o outro lado. O rabo já não estava tão empinado.

Morou uns tempos na Vila Chocolatão, onde ganhou o nome de “Garanhão” porque estava sempre dando em cima das cadelas. Dizem que foi sempre bem tratado, mas não deve ter gostado das instalações, pois se mudou para um espaço da Escola Técnica Parobé, em frente. Lá enfrentou dois problemas. Viu a vila ser removida, e seus amigos e namoradas dali irem embora, e enfrentou a má vontade de duas ou três professoras, que achavam que colégio não é lugar para cães.

Foi ali, também (onde cheguei a visitá-lo algumas vezes, e de onde se recusava a sair) que foi descoberto por Bernardete, funcionária do Centro Administrativo do Estado, que passou a alimentá-lo e que, quando a situação com as professoras tornou-se insustentável, junto com uma amiga conseguiu convencê-lo a sair e o levou para a Pet e Clínica “Cantinho dos Travessos”, na Demétrio Ribeiro, que o abrigou, apesar de sua proprietária, Letícia, ter percebido desde o primeiro momento que ele estava em um estágio terminal de  insuficiência renal.

Na dura vida do Alemão, esse foi seu melhor momento. Até então, todos que haviam dele se aproximado, e mesmo ajudado, haviam dado muito, menos um abrigo seguro. Inclusive eu, todos tínhamos motivos para não levá-lo para casa, um outro cão, pouco espaço, pouca grana ou, no meu caso, cinco gatos. Na clínica de Letícia ele conviveu bem com outro cães, com gatos, teve seu sustento (alimentação especial e medicamentos) bancado por um crescente número de amigos e jamais reclamou do espaço. Ganhou um porto seguro, uma casa, e sentiu-se assim, em casa. Apenas seus rins jamais melhoraram.

Neste último sábado, dia 19 de agosto de 2012, depois de dois dias no soro, sem comer, cheio de feridas na boca, botando sangue para fora por tudo, Alemão foi posto para dormir, este eufemismo que a mim parece desprovido de todo sentido para a cruel realidade da verdadeira informação: foi sacrificado.

Ficamos – Ânia e eu – com ele quase até o fim. Claro, ele preferiu a companhia da Ânia, mulherengo como sempre, mas lá pelas tantas veio para o meu lado, deitou a cabeça no meu colo e conversamos um pouco. Não que eu tivesse o que lhe dizer. Eu queria poder sequestrá-lo e levá-lo para um lugar onde um milagre acontecesse, ele ficasse curado e a gente pudesse ficar junto. Uma última vez ele lambeu minha mão, a direita, é claro. Não a lavei até o dia seguinte.

Então ele foi levado e se foi.

Gostaria de ter ficado junto até o fim, mas Dona Celina, mãe de Letícia, que com ela o cuidou neste último ano e meio, o pegou e foi. Tenho certeza que ele morreu mais tranquilo nos braços de uma mulher. Saí da clínica à francesa.

Não tenho mais um amigo. Posso rodar pela cidade o quanto quiser, procurar por todos os cantos, nunca encontrarei Alemão por aí. Se pudesse, mandaria rezar uma missa por ele na Igreja das Dores, não que eu seja católico, mas porque seu velho pátio, hoje transformado em estacionamento, foi um dos lugares que Alemão frequentou. De repente, até pela nave da igreja ele andou. Mas não se reza por cães. E, apesar dos padres dizerem que eles, como todos os animais, não têm alma, a verdade é que eles não morrem, mas deixam sua memória (outro nome para “alma”) para sempre viva entre todos que conviveram com eles.

E agora,  vou até a memória brincar com o Alemão.

Pessoas conhecidas (há tantas outras, que não conheço) que fizeram parte da vida e ajudaram o Alemão neste curto tempo que esteve entre nós: Tanise; Iara; Ânia; Maria Helena; Bernardete; Carlos (que o levava a passear nestes últimos tempos), Enara (aplicava-lhe reiki); Simone (fazia imãterapia); Dona Vera; Mariluce; Aita; Verena e, claro, por último, mas as que mais fizeram para tornar melhor e mais digna a vida do Alemão, Letícia e Dona Celina, da Pet-Clínica Recanto dos Travessos. Onde estiver, com ou sem alma, de lá ele agradece por tudo.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Filhotes de onça

Ximbica é empresário de sucesso em Porto Alegre, nem velho nem moço, nem de direita nem de esquerda, nem agitador nem acomodado. Um livre pensador. Claro que seu nome não é este, mas como, na posição que tem, poderia assinar certas coisas? Então virou "Ximbica", sabe lá Deus por que deste pseudônimo, para escrever aqui. Leiam seus textos. A julgar por este, vão valer a pena.

Eram umas cinco ou seis motinhos, dois quadricículos e um buggy. Encima das motos dois, três e até quatro, dos quadricículos uns seis ou sete e no buggy uns dez garotos. Todos entre os dez e os treze anos no máximo. Vá lá, os do buggy poderiam ter quinze ou dezesseis, não mais. No total mais de vinte crianças alegres e descontraídas a correr pelas alamedas e ruas do condomínio. Uma festa de irresponsabilidade aos olhos de vaidosos e orgulhosos papais e mamães da nossa classe média alta. Todos sem capacetes ou qualquer outro equipamento de segurança e também todos acima do limite de velocidade preconizado para as vias internas do lugar– um dos condomínios fechados da hight society gaúcha.
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Logo a seguir outro bando, esse de bicicletas, andando pelo meio da rua. Mais jovens que os primeiros são aprendizes atentos dos mais velhos. Ano que vêm serão eles os motorizados. Incrível como criamos e até incentivamos esses pequenos transgressores. Amanhã ou hoje a noite mesmo, ficarão com seus pares, transarão sem camisinha e contrairão suas primeiras doenças venéreas – melhor ficarmos por aqui, sabemos que pode ser pior. Afinal se conhecem desde crianças e seus pais são amigos de há muito. Todos de ótimas famílias, é claro. Como exigir o uso de preservativos? Como querer que usem capacete? Que andem dentro dos limites? Daqui a pouco serão os mesmos a surrar uma domestica em um ponto de ônibus ou a atear fogo em um mendigo na praça. Claro que dirigirão bêbados assim como seus pais. Também tentarão subornar os policiais rodoviários na primeira oportunidade que tiverem. Afinal é o exemplo que tem.
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Não nos iludamos, estamos criando pequenos monstros. Crescem a sombra das nossas transgressões e não podem ser muito diferentes. Cansam de ver suas mães, em fila dupla, discutirem e desacatarem os guardas na saída da escola e, mesmo multadas, desdenharem a autoridade do pobre serviçal ali colocado para ordenar as coisas. É inacreditável que sob nossas barbas permitamos que essas coisas aconteçam e que continuemos dando maus exemplos como se eles não fossem perceber. Faça o que digo não o que faço. Essa é a máxima que gostaríamos que norteasse nossas vidas e a educação dos nossos filhos. Não existe, não é assim que as coisas funcionam. Ou nos conscientizamos ou amanhã não teremos sequer o direito de nos queixar ao bispo. Filhos de onça já nascem pintados. É a legitima e irreversível lei da selva.
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Merecemos outra?
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Acho que sim, que dá para virar o jogo. Mas temos que começar pelo nosso comportamento. Precisamos criar mecanismos que acabem com a impunidade com que somos contemplados quando erramos e contrariamos ou infringirmos as regras e as leis. Inacreditável não nos darmos conta disso. Basta! Vamos construir uma sociedade melhor para essas crianças. Só depende de nós.


Ximbica

Os índios, sempre os índios

José Truda Palazzo Jr. é um dos últimos ambientalistas autênticos e indignados do nosso país. Em contraponto ao silêncio obsequioso que domina o chamado "movimento", ao alinhamento partidário que emudeceu antigas lideranças, ele continua extremamente coerente e ativo. Xinga todo mundo que merece ser xingado, pede apoio a todo mundo em condições de oferecê-lo e não se veja, se preciso for, em brigar com quem o apoiou, em nome da coerência. Criou o "Projeto Baleia Franca", em Santa Catarina, faz anos (não lembro exatamente quantos porque até hoje não recebi o livro que festeja um aniversário "redondo" de suas atividades) e representa o Brasil na Comissão Internacional da Baleia, de graça, porque as baleias precisam dele. É um figuraço. O texto abaixo foi publicado originalmente em "O Eco", mas ele autorizou sua reprodução aqui. Dá-lhe, Truda!
Índios Carijó, gravura de Ulrich Sschmidl, 1559.

Primeiro eles eram a Utopia encarnada. As comunidades indígenas, comunidades tradicionais, enfim quaisquer grupos humanos tecnologicamente simples, de baixa demanda energética ou simplesmente pobres que moram em lugares remotos foram decretados pelos gringos mais imbecis do planeta - teóricos, acadêmicos e burocratas de governos e mega-ONGs chupa-grana - como detentores do saber mais avançado sobre gestão ambiental. Integrados à Natureza, sábios da floresta, vivendo em harmonia, todos os clichês de Rousseau sobre o bom selvagem que se imaginava na Europa pós-medieval renasceram de imediato, alimentados entusiasticamente pelos governos incompetentes e corruptos dos países do sul, incapazes de lidar com qualquer coisa que se assemelhe a uma gestão ambiental esclarecida e comandados por políticos doidos por desvios demagógicos dos assuntos difíceis e necessários, como a criação de áreas protegidas nos últimos resquícios de Natureza ainda não escangalhados por pobres, ricos, brancos, índios, negros, amarelos, roxos, todos.

De nada adianta que provas se acumulem sobre a nulidade das asserções sobre a "harmonia" das populações nativas com os ambientes que ocupam. Da hecatombe causada pelos polinésios nas ilhas do Pacífico à derrocada das civilizações mesoamericanas, todas produto de má gestão ambiental - não a culpar os seus autores, que nada mais faziam do que ser ignorantes de pleno do resultado de suas ações nefandas, mas sim a reconhecer de forma irrefutável que todos os humanos têm impactos ambientais a serem reconhecidos e manejados. Hoje em dia, a aliança perversa de governos corruptos, burocratas safados e "esquerdas" irresponsáveis tornou o mantra das "comunidades tradicionais " um verdadeiro tabu stanilista, proibido de se discutir, se questionar e se confrontar com fatos. O menos que se pode esperar de levantar esse assunto é ser chamado de fascista. O mais, que se ostracize o herege que o fizer, queimando-o (nem sempre retoricamente) em praça pública.Agora, além de arautos da Utopia do Passado a impedirem, questionarem ou retardarem a proteção das últimas áreas naturais passíveis de proteção, ou de simplesmente tomarem de assalto as poucas existentes como o Parque Nacional do Monte Pascoal ou os parques estaduais e municipais do Rio Grande do Sul, os Excluídos Benignos passam a reivindicar também o direito de impedirem a defesa do futuro. Não é a outra a leitura que se pode fazer da criminosa bandalheira que os auto-eleitos líderes (?) de "povos tradicionais" e seus arautos - surprise, surprise, os burocratas e ONGs do Rico Norte em nome de seus lacaios daqui de baixo - estão promovendo nas conferências e discussões ora em curso sobre medidas para conter a mudança climática acelerada. "Proteger florestas nos prejudica", gritam os pobres excluídos. "Biocombustíveis nos deslocam", sapateiam outros. "Hidrelétrica é sempre ruim", disparam outros entre irados perdigotos. No fim do dia, o que todo mundo quer tá na cara: dinheiro e poder político. Dane-se o planeta, danem-se as florestas, dane-se a biodiversidade, todas coisas dispensáveis, o importante é tirar foto com qualquer um de pele não-branca com uns matos ou praia atrás para por em folhetinho bi- ou trilingüe.

Está mais do que na hora de se questionar esse estado de coisas. As comunidades tradicionais e pessoas de diversas cores não são melhores nem piores que outras diferentes delas quando se trata de gestão ambiental. Seres humanos têm impactos no ambiente; esses impactos dependem de tecnologia, demanda energética e demografia, e não da cor ou da roupa ou das crenças religiosas das pessoas. Afirmar o contrário é transformar a gestão ambiental numa religião ou ideologia política, e os resultados são os que estamos vendo, não apenas no Brasil, mas no resto do mundo que adere a essa bobajada travestida de justiça social.
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Povos tradicionais, quilombolas, pescadores artesanais, índios, todas as minorias que estão sendo engolidas pela globalização ou mesmo pelo loteador tarado da esquina mancomunado com o prefeito ladrão merecem justiça social. Merecem a defesa de seus direitos contra a exclusão, contra a assimilação forçada, contra a ocupação ilegal de suas terras e esbulho de seus recursos tradicionais, mas também merecem legitimidade social contra seu uso como espantalhos anti-conservação pelas "lideranças" fashion fajutas que a mídia e as mega-ONGs fabricam para deleite visual e sonoro do público urbano ignaro. Se queremos construir um futuro comum para a humanidade nesse planeta finito e estuprado, é preciso que se dê um curto-circuito nesse besteirol pseudo-social e passemos, todos, a tratar de gestão ambiental como algo tecnicamente cabível e possível, mas que depende de fatos e ações, não de versões ou credos.
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Chega de embuste. Chega de demagogia. Chega de fingir que essa pataquada está resultando em algo que não seja o óbvio: o fim das últimas áreas naturais, por má gestão absoluta e omissão da maioria de nós. Ou então assumimos, de vez, que a "gestão ambiental pública" nada mais é do que um fanatismo a mais: a religião primitiva e canibal da "Natureza para o Homem", professada com igual ardor por lideranças "sócio-ambientais", militares, religiosos monoteístas, políticos de todos os matizes e canalhas de todo o globo.
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*José Truda Palazzo Jr. se apresenta como jardineiro e indignado. Endereço para desaforos: palazzo@terra.com.br.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Porque não se pode matar dodôs

Faz doze anos, recebi o texto abaixo em um panfleto mimeografado. Gostei tanto que o redigitei todo e o enviei, pela nascente internet, para meus amigos. Agora, em meio a esta polêmica sobre a subserviência do nossos poderosos aos interesses estrangeiros que aqui chegam ditando normas, sem respeitar as leis locais como respeitam as de seus países de origem, lembrei do texto e resolvi divulgá-lo aqui. É sobre o que pode acontecer a quem mexe com ecossistemas sem respeitar as leis da natureza, como estão fazendo no pampa gaúcho.

Atenção: o que vai publicado aí embaixo é uma fábula, mas recentemente cientistas descobriram que uma espécie de árvore das ilhas Maurício estava se extinguindo. Foram estudá-la e descobriram que as últimas ainda existentes eram de antes da extinção dos dodôs. Hoje esta espécie é conhecida como “árvore dodô”. E foi salva com a importação de perus para fazer o papel de dodôs.

Saúl Schkolnik é um escritor chileno. Nasceu em 1929, formou-se arquiteto e só começou a escrever aos 48 anos. Produz literatura infantil e adulta, sempre com forte cunho científico e ecológico. Tem vários prêmios chilenos e internacionais, e o reconhecimento da comunidade científica pela seriedade com que trata assuntos normalmente complicados para crianças.




Porque não se pode matar dodôs

Texto de Saúl Schkolnik

Em uma pequena e montanhosa ilha do Mar Índico, chamada Ilha Maurício, lá pelo ano de 1660 vivia João, tecelão famoso pela qualidade de suas esteiras e chapéus. Ninguém sabia o segredo de fabricação dos tecidos que ele fazia, mas em sua ilha cresciam esbeltas palmeiras, de cujos frutos, uns coquinhos com a casca dura e grossa coberta com uma capa de fibras, João obtinha o material para trabalhar. Era o mesmo que faziam os artesãos das ilhas próximas, mas os trabalhos de João eram melhores, muito mais macios que os de seus vizinhos.

- Teresa – dizia ele à sua mulher – vamos ver se os caranguejos já fizeram seus ninhos? E ambos desciam à praia e procuravam ao pé das palmeiras, entre as bromélias.

- Este é o meu segredo – dizia ele a sua mulher, enquanto recolhiam os ninhos. – Os caranguejos arrancam a fibra que cobre os cocos e a amaciam até deixá-la convertida em fibras suaves, com as quais fabricam seus ninhos. E eu utilizo essa fibra suave, feita pelos caranguejos, ao invés da fibra dura do coco para fazer meus tecidos.

Durante a primavera, a praia se cobria de bromélias vermelhas, e os beija-flores, revoluteavam junto à flores, bebendo seu néctar. O que João e Teresa não sabiam era que os beija-flores, além de beber o néctar das flores, permitiam a polinização das bromélias, pois sua cabecinha se impregnava do pólen das flores e eles o transportavam para outras. As sementes assim fertilizadas das bromélias caíam nas fendas dos troncos das palmeiras e a planta logo crescia, arrastando-se também para a areia. Os beija-flores, por sua vez, construíam seus ninhos nas palmeiras de um ou dois anos, pois não gostavam da dureza das folhas das árvores velhas.

- Que faríamos nós sem as palmeiras? – havia perguntado Teresa em certa ocasião.

- Melhor nem pensar – respondeu João. – Sem as palmeiras não teríamos os cocos, nem os ninhos de caranguejo... Melhor nem pensar...

E havia também os dodôs!

- João... João – gritava Teresa quando enxergava algum – aí está outro desses pássaros horríveis!

E João, armado de um garrote, saía a perseguir ao dodô e o golpeava até matá-lo.

João os matava porque os dodôs comiam um bocado dos cocos de que tanto necessitava o tecelão. O dodô, grande como um pavão e parecido com uma pomba, corria e corria, pois não podia voar. Porém, como era muito lerdo e pesado, sempre era alcançado por João. E assim corria a rotina da vida na ilha.

Até que um dia não havia mais dodôs. João havia matado a todos. Não sobrara nenhum. Ninguém mais comeria os tão necessários frutos das palmeiras. João achou seus problemas tinham acabado.

- Por fim! – disse ele à mulher – Acabaram os dodôs. Não há mais nada com que nos preocuparmos. Agora vamos ter mais cocos, fazem mais tecidos e ficar mais ricos.

Passou-se um ano, e tudo parecia igual ao de costume. Algo porém chamou à atenção de Teresa.

- Percebeste, João, que não existem brotos de palmeiras este ano?

- Para que te preocupas, mulher, se há tantas palmeiras? –respondeu o tecelão.

No ano seguinte ocorreu o mesmo: nem um só broto novo apareceu no lugar. Então ambos preocuparam-se um pouco. Mas havia tantas palmeiras que logo esqueceram daquele estranho fenômeno.

Eles não percebiam o que estava acontecendo, que as palmeiras estavam ficando velhas, morrendo, e nenhum novo broto voltava a aparecer. E não sabiam que não havia palmeiras novas por que não havia dodôs. Normalmente, os cocos caem ao solo e depois de algum tempo o embrião em seu interior produz uma raiz. A raiz cresce e, ploft!, rompe a casca, se enterra na areia e plump!, o diminuto talo verde sai ao ar e, ao fim de um par de anos, outra grande palmeira agitará suas folhas junto ao mar.

João não entendia porque isto não estava acontecendo: “Aí estão os cocos, milhares deles, não vejo por que não brotam”, exclamava indignado, mostrando a praia.

Porém, as palmeiras da Ilha Maurício eram de espécie muito especial. Seus frutos, como já vimos, tinham uma casca tão dura que a raiz, por mais força que fizesse, não conseguia rompê-la. Aí é que entrava o dodô. O dodô comia um bocado do pequenos coquinhos, tantos, mesmo, que por isso era perseguido por João. Que não sabia da importância do dodô.

O coquinho engolido passava por todo o sistema digestivo do pássaro. Ali, os músculos trituradores e os sucos digestivos conseguiam amolecer sua casca dura, mas não a desmanchavam completamente. Assim, quando finalmente o coco era eliminado, junto com todo o alimento não digerido, ele voltava a cair inteiro na areia.

E em seguida então, ploft! A raiz conseguia romper a casca, agora macia, e se enterrava na areia. Depois, plump! Um diminuto talo verde saia ao ar e rápido, muito rápido se convertia em outra bonita palmeira.

Era o dodô que, ao comer aqueles frutos, permitia que as palmeiras se reproduzissem; desaparecendo os dodôs, não houve novas palmeiras.

O mais terrível, no entanto, aconteceu ao terceiro ano.

- Não vi nenhum beija-flor esta primavera – disse Teresa.

- Tens razão Teresa – respondeu João. – Seguramente voltarão no ano que vem.

Mas os beija-flores não voltariam. Eles faziam seus ninhos somente nas palmeiras de um ou dois anos. Como já não havia palmeiras jovens, os passarinhos não conseguiram fazer ninhos. Sem ninhos, não tiveram filhotes. E sem poder ter filhotes na Ilha Maurício, tentaram ir para outros lugares. Ao desaparecerem os beija-flores, ninguém polinizou as bromélias, que começaram a morrer sem deixar mudas novas. E, aos poucos, também os ninhos dos caranguejos começaram a desaparecer, porque eles não encontravam os cocos de onde obtinham as fibras para fazê-los. Assim, passados quatro anos, quando João e Teresa desceram à praia para buscar ninhos de caranguejos para usar a fibra suave para fazer esteiras, cestos e chapéus, não encontraram nada.
- João – disse Teresa, assustada – o que terá ocorrido? Não há um só ninho de caranguejo!

- Tens razão mulher, e isto é terrível, porque meus tecidos já não serão os mesmos, nem tão suaves, nem tão bonitos.

- Mas que tecidos vais fazer, se cada vez há menos palmeiras para produzir coquinhos? Nem duros, nem macios, não vamos poder fazer mais nada – respondeu chorando Teresa.

“Que terá ocorrido?”, se perguntavam ambos, sem saber que eles mesmos eram os responsáveis pelo que ocorria, por terem matado aos dodôs.

Eles não sabiam nem podiam sabê-lo. Morreram pobres, numa ilha quase sem vegetação. Mas tu sabes. Por isso, se visses um dia algum dodô, coisa que já não é mais possível, saberias porque não poderias matá-lo. E assim também, antes de exterminar qualquer outra espécie, antes de destruir qualquer área natural, pensa, pensa bem, pensa muito, pois sem saber, como João e Teresa fizeram, podes estar destruindo tua própria vida.

terça-feira, 15 de abril de 2008

A verdadeira vanguarda do atraso

Não existe jornalismo neutro. Como norma, todo jornalista tem sua opinião, assim como toda a empresa jornalística tem a sua própria. Empresas modernas e saudáveis abrem espaço para jornalistas que não comunguem com suas próprias posições (da empresa) para darem ao público em geral uma visão minimamente variada dos fatos. Por isso, mesmo em jornais tradicionalmente conservadores é possível encontrar repórteres, editores e colunistas de posições avançadas. Aliás, foram os jornais mais conservadores que abrigaram maior número de perseguidos pelo regime militar, no Brasil. Saudável contradição.

Nem todo conservador é sacana, e vice versa. Uma das maiores lições que aprendi com meu pai e com José Lutzenberguer (ambos repetiam muito isso) foi esta: a grande maioria de nossos adversários não tem as posições que tem por má fé ou má intenção, e sim por convicção. Assim como nós. Eles acreditam tanto nas deles quanto acreditamos nas nossas próprias idéias. Em conseqüência, é preciso exercitar sempre a difícil arte do diálogo tolerante. Verdade que é muito difícil ser tolerante quando o adversário avança com tacapes na mão, mas a tentativa não deve ser descartada logo à primeira pancada.

Jornalistas como Lasier Martins e Políbio Braga têm tanto direito de ter e de exprimir suas posições quanto nós as nossas. Nenhum dos dois é burro, nenhum deles é sacana. E são muito diferentes entre si, o que não vem ao caso no momento. O texto publicado no post abaixo, de autoria de um professor da Universidade de Pelotas, é sobre um programa de Lasier. O texto que vai logo aqui abaixo, neste mesmo post, é do próprio Políbio Braga, publicado em sua “newsletter”. Os dois giram sobre a liberação da tal de silvicultura no Rio Grande do Sul.

Sobre o programa de Lasier, comenta o professor. Sobre o texto de Políbio, vou me limitar a transcrevê-lo, quase sem comentários. Quero apenas deixar registrado que ele foi salvo em um DVD e entregue a meu filho e a quatro sobrinhos, com a incumbência de em 30 anos divulgá-lo na rede, ou no que a suceder, junto com o resto do material divulgado neste blog de seu início até agora. Três décadas não são pouco, mas também não são demais. Em três décadas, os “modernos” escravagistas da Europa e dos Estados Unidos haviam sido patrolados pelos que chamavam de “inimigos do progresso”. O Brasil, claro, precisou de mais tempo, aqui os “progressistas” sempre precisam de mais tempo para rever seus conceitos. Mas hoje nenhum país minimante civilizado tem escravos.

Com a questão ambiental certamente será assim. Em breve chegará o tempo em que até aqui no Brasil os “progressistas” vão perceber que a conservação de um meio ambiente saudável, de uma biodiversidade variada, são fundamentais para a própria preservação de nossa sociedade. Poderá ser tarde, talvez não, mas eles vão perceber. Então, toda esta discurseira “progressista” de hoje, que nada mais é do que a verdadeira vanguarda do atraso, expressão que eles tanto gostam de usar, terá sido varrida para o lixo. Difícil vai ser fazer as correções então urgentes e necessárias dos problemas que ela tiver provocado. Mas se algum consolo ns resta, é o de que o planeta sobrevive, sempre. Sobreviveu à primeira grande extinção, e a vida voltou renovada, sobreviveu à segunda grande extinção, que levou os dinossauros, e a vida voltou renovada, e sobreviverá à terceira, provocada por processos naturais apressados pela agressividade humana. Mas a vida certamente voltará, renovada.

Nós é que não estaremos mais aqui.

Hoje os "desenvolvimentistas" estão festejando a destruição dos ecossistemas gaúchos, não pela instalação das papeleiras – isto seria plenamente possível – mas por sua instalação desordenada, violenta e com legalidade imposta à força, de uma forma que nenhuma destas empresas conseguiria fazer em seus países de origem. E a culpa nem é delas. A culpa é nossa, que qual silvícolas assistimos nossos chefes entregarem de bandeja nossas riquezas a troco do que de imediato parece ter muito valor, mas que no longo prazo se revelará, como sempre, nada mais do que miçangas. Leia o texto de Políbio, que será reproduzido daqui a 30 anos com base para um debate das gerações que ainda estiverem por aí.


A Aracruz, com seus US$ 2,8 bi, é só o começo

Nesta segunda-feira a tarde, a equipe desta página foi atrás da informação sobre os investimentos da Aracruz no RS. Nesta terça-feira, a empresa anunciou simultaneamente em Porto Alegre e em São Paulo, investimentos enormes, algo como US$ 2,8 bilhões na sua atividade de base florestal do Estado. As obras terão início no segundo semestre, ao longo de todos os desembolsos gerarão 10 mil empregos (a FGV tem cálculos que demonstram que serão gerados 50 mil empregos diretos e diretos) e basicamente ampliarão a capacidade da fábrica de Guaíba para 1,8 milhão de toneladas anuais de celulose. Para isto, claro, vastas extensões de terra e milhares de parceiros serão mobilizados para plantar novas florestas e portos moderníssimos (US$ 130 milhões) surgirão no rio Jacuí e na Lagoa dos Patos.

. Trata-se do maior investimento realizado no RS em toda a sua história e corresponde ao que foi colocado na GM e no Pólo Petroquímico somados. Só com florestas a Aracruz investirá US$ 630 milhões.

. A Aracruz é a única fábrica de celulose do Estado, mas em breve terá a companhia de outros dois gigantes, a VCP e a Stora Enso, cujos investimentos poderão chegar, cada uma, a valores de mais de US$ 2 bilhões.

. No total, serão mais de US$ 6 bilhões, algo jamais visto no RS e que mudará radicalmente o paradigma da economia da Metade, a mais pobre do Estado.. A Metade Sul fará um up grade jamais visto em 250 anos, mesmo depois do desembarque da soja.

. Atrás das novas florestas e da celulose, virão o papel, a madeira aglomerada, o MDF, as gigantescas madeireiras automatizadas, os móveis e o material para construção. E tudo em escala gigante para consumo interno e colocação no mercado mundial. E mais emprego e renda em proporções jamais vistas no RS. . O nome de toda a parada é a conquista de escala mundial de produção e comercialização.

. Coube à governadora Yeda Crusius levar o anúncio para dentro do Piratini. Yeda foi decidida e corajosa ao enfrentar as mentirosas retórica e ações da vanguarda local do atraso ambientalista para garantir os investimentos. Fez isto quando botou para a rua seus incompentes secretários do Meio Ambiente e presidente da Fepam, no momento em que fez aprovar a nova lei de zoneamento ambiental e quando deu as garantias exigidas pelos investidores. Ela completou a obra iniciada pelo governador Rigotto, que levou pra a Caixa RS toda a concepção da nova atividade de base florestal do RS, atraindo Aracruz, Stora Enso e VCP de uma só tacada.

. Agora falta a VCP anunciar sua mega-fábrica de celulose e talvez papel em Arroio Grande, Pelotas ou Rio Grande. Isto poderá ocorrer antes que a Stora Enso faça o mesmo.

Em http://www.polibiobraga.com.br/?PAG=ultimas_noticias_detalhe.asp?ID=46670

Desertos verdes: homens de governo ou empregados das empresas?


Althen Teixeira Filho, professor titular do Instituto de Biologia, da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), enviou a seguinte carta ao jornalista Lasier Martins, da RBS. Prudente, educado, respeitoso, Teixeira Filho produziu uma rara peça a demonstrar que os mais tenebrosos assuntos podem ser tratados civilizadamente, nem por isso com posições menos claras, definidas ou contundentes. O professor sabe do que está falando. Deveria ser ouvido pelo governo. Claro que não é.

"Caro Senhor, ontem tive a oportunidade de assistir ao seu programa na TV-COM, o qual debatia o projeto denominado de "silvicultura". Inicialmente gostaria de elogiar a iniciativa, uma vez que entendo, assim como muitos, que este projeto realmente poderá modificar drasticamente o perfil do Rio Grande do Sul.

Cito o nosso estado como um todo, uma vez que esta denominação de "metade sul" não me parece adequada, mesmo por que aprendi, ainda no colégio, que as fronteiras gaúchas são outras. Também, se "metade sul" fosse, eu não sei se algum dos seus ilustres convidados representava esta região, ou este preconceito já avançou ao ponto de entender-nos débeis não só financeiramente, mas também mentalmente. Para que não paire dúvidas, a crítica que faço não tem qualquer lasca de pessoalidade.

Mas, entre muitos, no meu ponto de vista, dois fatos chamaram muito a atenção. Em primeiro lugar escutar HOMENS DE GOVERNO dialogando e argumentando como se empregados das empresas fossem!? Foi admirável verificar com que clareza, e com que falta de cuidado, um projeto de governo confunde-se com as intenções de uma empresa particular. Aliás, a atenção daqueles senhores com as informações repassadas também foi vexatória e várias delas formalizam-se como mera propaganda gratuita para as empresas de celulose. Por exemplo, não é verdadeiro que as denominadas audiências públicas referendaram o projeto da "silvicultura". Estive presente em todas aqui em Pelotas e não foi isto que aconteceu, assim como em outras cidades.

Por outro lado, o caráter excessivamente técnico do debate em alguns momentos não espelhou a realidade do que se passa "in loco", como se as empresas respeitassem as leis, desde constitucionais às infraconstitucionais.

Para que o Senhor saiba, e como exemplo, o EIA-RIMA da VCP não passa de burla científica, materializando-se num amontoado de informações contraditórias, elaborado para impressionar tão somente pela dimensão final. Aliás, toda a documentação que corrobora estas afirmações já foi entregue na RBS-TV Pelotas e aguardo, ainda aguardo, que isto possa ter interesse jornalístico, mas não só aquilo que favorece às empresas. Para que também não paire dúvida, não acho errado, muito pelo contrário, que esta ou aquela pessoa ou emissora defenda uma posição ou opinião, mas tem obrigação de declarar este fato sem titubeios aos informados.

Por fim, mesmo com todos os milhões gastos em propaganda, ao final do programa foi possível verificar que as intenções das papeleiras não estão conseguindo "frutificar" na dita "metade sul" e os gaúchos mostraram que estão críticos e contrários aos oceânicos eucaliptais, que causam desemprego, subdesenvolvimento, miséria, destruição da terra, entre outros. Cordialmente e ao seu dispor".

Radicalismo, modismos e a vaca louca


Dia destes uma prima enviou-me a seguinte mensagem: "A filha de um amigo meu é jornalista e gostaria de fazer um pós na área sócio ambiental ou de agronegócio. Tens alguma indicação de bom curso? Pode ser aqui ou no exterior". Estava cansado, irritado com os desmandos que eucalipteiam pelo Rio Grande (já não se pode mais dizem que "campeiam", porque o campo já mal há) então sentei frente ao teclado e dardejei um discurso irado contra estes modismos. Depois mandei cópia dele para dois ou três outros amigos, que responderam - quase todos - perguntando por que estava me tornando tão radical. Radical, eu? Pode ser, mas como não ser, quando o assunto é a defesa do meio ambiente?

Em tudo e por tudo, os agressores do meio ambiente são sempre radicais. Isto atualmente é especialmente claro aqui no Rio Grande do Sul, onde toda a cúpula ambiental do Estado não gosta da questão ambiental, parece considerá-la apenas mais um entrave ao progresso. Mas em qualquer lugar o processo se repete. Se uma avenida for alargada em uma cidade qualquer, e de um lado tiver árvores - um parque - e de outro construções, sobre qual deles se dará o alargamento?

"É só um pedacinho" é o argumento recorrente dos agressores. É só um pedacinho do parque, é só um pouquinho do pampa, é só uma baiazinha do mar, é só um pouquinho da água do rio, e assim vai. A fábrica também, só polui um pouquinho do ar, tudo é só um pouquinho, e quando alguém reclama é logo taxado de radical. Seria assim como sobreviventes de um naufrágio que, dia a dia, fossem cortando "só um pedacinho" do bote salva-vidas para fazer artesanato em madeira, e chamassem de alarmistas aqueles outros - talvez poucos - que alertavam dizendo que aquilo não iria dar certo. Ao final, todos morreriam afogados, mesmo que suas peças de artesanato dessem à praia e fossem vendidas por verdadeiras fortunas.

E daí? Vale a pena gerar riquesa às custas da destruição das possibilidades de preservação da vida? Me parece que não. Por isso, quando todo sistema, quando todas as doutrinas políticas vigentes priorizam a acumulação de riqueza, quer privada, quer pública, um pouco de radicalismo não vai tão mal assm quando a questão é defender a qualidade (ou até mesmo a possibilidade) de vida de nossos descendentes. Pois a não ser que você tenha garantido para seus filhos e netos uma passagem em um disco voador para outro lugar bem habitável, é melhor começar a tratar melhor deste nosso cantinho, que por apertado e ameaçado que esteja, ainda é o único que nos resta.

Leia aqui, então, meu texto que orgulhosamente reconheço ser radical. Vamos ser radicais enquanto é tempo:

Prima: Não existe área "sócio ambiental". Isso é uma picaretagem para justificar degradação ambiental. O ambiente, enquanto substrato sobre o qual todas as formas de vida se desenvolvem está pouco se lixando para as variáveis sociais, que são um rebotalho da cultura humana, desde sempre injusta.

Exemplo: a Ilha de Páscoa tinha capacidade de sustentar uma determinada população, com suas necessidades fisiológicas e culturais (no caso, principalmente religiosas). Vamos dizer, dez mil pessoas. O ecossistema não ligava se os recursos iriam ser concentrados em mil pessoas e as outras iriam ter uma vida de merda ou se a sociedade era justa e igualitária (convenções sociais). Ele tinha uma "capacidade de carga" para 10 mil pessoas. Quando a população passou disso, o sistema entrou em colapso. Mais gente significava não apenas mais comida (que podia ser pescada), ou mais merda e lixo (que podiam ser jogados no mar), mas também mais templos, mais lugares sagrados e mais moais.

Estes, apesar de serem feitos de pedra, precisavam de troncos de palmeiras para serem rolados e de madeira de árvores para servirem de andaimes. Mais gente, mais moais, mais madeira derrubada. Eles derrubaram tudo, entraram em crise e a sociedade se desfez. Bem feito.

Aconteceram coisas parecidas na Grécia (se leres história ou mitologia antiga, vais ver que a Grécia era coberta de florestas) e em dezenas de outras civilizações. Em nenhuma delas a "questão social" pesou muito e o ambiente deteriorado por exaustão de uso (socialmente justa ou não) entrou em colapso, levando de roldão as sociedades e culturas que abrigavam.

Hoje em dia, quando a sociedade dominante organizada (capitalista, comunista, petista ou peesedebista, com todas a variações possíveis e imagináveis, inclusive religiosas, sociais, psicossociais e outros "ais") resolveu se apropriar da questão ambiental para, através das certificações, valorizar seus produtos. Criaram-se mitos como "desenvolvimento sustentável", "área sócio ambiental" etc.

Bullshit.

O ambiente não negocia coisa alguma, a Terra é como uma Ilha de Páscoa, apenas maior. Agredir áreas naturais de importância (como, por exemplo, os banhados e florestas tropicais ainda existentes no mundo) será fatal para a sobrevivência do planeta, não importa os motivos (justos ou injustos) que se aleguem para tal ocupação. Para não falar na agressão ao mar, inimaginável até pouco tempo atrás.

Botar uma usina nuclear no que resta de pampa, de floresta amazônica, de banhados ou na beira do mar é tão ruim quanto destruir estes locais para plantar espécies exóticas, criar assentamentos de miseráveis ou novos distritos industriais. Não importa se de imediato serão criados novos empregos, mais energia ou maior concentração de capital. O resultado será cobrado no futuro (um futuro cada vez mais imediato),através da redução da capacidade de carga do sistema planetário, resultando em extinção de espécies, falta de alimentos e - muito possivelmente - numa drástica redução (senão a própria extinção) da população humana.

Um sistema fechado, como é nosso planeta, não admite discurseiras, justificativas ou negociação, nem tem senso ético, moral ou social sobre o que for sobrecarga de uso. Ele apenas colapsa. Então esta história de "área sócio ambiental", na medida em que sempre resulta em motivações sociais para a destruição ambiental, não passa de puro e cruel blefe.

Outro blefe é o tal do "agronegócio". Como produção de alimentos pode virar um mero negócio? Como políticas de preço podem resultar em destruição proposital de estoques de comida ou em morte de animais de criação para a manutenção valores, e assim por diante? Chamar a produção de alimentos, esta coisa cada vez mais fria e distanciada da humanidade, de "agonegócio", é submeter o mais característico ato de todo ser vivo (o de se alimentar) às regras desta coisa chamada Mercado, que tem a cara e a postura de seu chará, o atualmente sumido Walter Mercado.

Poderia indicar mil leituras à respeito. Isto faria da filha de teu amigo uma pessoa melhor, mais humana, mas certamente muito mais angustiada. Como a preocupação dela deve ser muito mais imediata - ganhar dinheiro - vou procurar alguns endereços de lugares que constroem essas grandes mentiras humanas e poderás mandar a ela, que talvez até fique rica seguindo estes modelos, mas que estará com eles ajudando a tornar pior, ou impossível, a vida de seus descendentes. A cada um, suas escolhas.

PS: Segue abaixo um antigo texto meu, que apesar de ser sobre a crise (na época) da vaca louca, tem e não tem algo a ver com tudo isso que escrevi, principalmente sobre o chamado agronegócio.


Provocação: A vaca é louca?

Nos Estados Unidos, milho transgênico se misturou ao outro, "tradicional", e agora vai tudo para alimentação de animais. Ou alguém acha que eles são malucos de comerem aquilo? Mas, se não são, para que plantavam milho transgênico? Ora, para exportar, é claro. Exportar para onde? Para os cucarachas, que qual baratas não se importam com o que comem, é claro. Bastou uma parte ínfima do que iam mandar para nós se misturar à comida deles, e pronto, não houve polêmica: governos, indústrias, produtores, todos foram unânimes: impróprio para consumo humano; por humano, é claro, se entendendo "eles", não "nós".

Mas cuidado! Se a gente descuida, os "animais" que serão alimentados com este milho não serão os deles, nem os nossos, mas nós mesmos. Melhor ficar atento para um possível aumento na oferta de milho para exportação nos Estados Unidos. Vai pra lá, puxa pira ali, as porcarias acabam aqui.

E a vaca? A louca é perigosa, contagiosa, mata aos rebanhos e aos humanos. Mas por que? De onde saiu a epidemia desta doença, rara e circunscrita até poucos anos atrás? Da moderna tecnologia. Vaca que come pasto não fica louca, como sabem todos. E vaca comer pasto é uma espécie de determinismo genético. Escrevi "é"? Perdão, na verdade, "era". A moderna tecnologia alimenta vacas com ração, e a ração é feita em grande parte com... carne!

Aquelas ovelhinhas que se vê pastando nos campos ingleses, não estão lá só para produzir lã, nem, muito menos, para alimentar pessoas. Estão lá para virar ração de vaca. É que vaca alimentada com ração engorda mais, e mais rapidamente. Só tem tem um problema: para gerar carne, ela também consome carne. Ou seja, disputa conosco a mesma alimentação.

A idéia não é nova. Nas fábricas de galinha que andam por aí, as penosas, imobilizadas para não gastarem energia, são também alimentadas com ração animal. Ou seja, para produzir carne em 45 dias (aos 50 elas morrem, se não tiverem sido abatidas), as galinhas "modernas" comem ovelhas, misturadas com milho e soja.

Quando você come uma galinha ou vaca destas, está também comendo ovelhas e vegetais próprios para consumo humano. O paradigma (palavra detestável, mas bem aos gosto dos tecnólogos) da moderna produção rural, está em acelerar a produtividade dos rebanhos alimentando-os com proteína animal e vegetal de alta qualidade, ou seja, com comida de gente.

Para que você tenha seu filé, muita gente não pode comer ovelha. Para que você tente saborear estas galinhas sem graça, cor nem consistência, que são "fabricadas" nas linhas de montagem do que antigamente se chamavam "galinheiros", outras tantas pessoas não podem comer seu quinhão. Carne, grãos, proteínas, tudo vai prioritariamente para o gado. Gastam-se algumas toneladas de alimentação própria para o consumo humano, para gerar alguns quilos de alimento humano. Tem algo errado, é claro.

Para não falar que a pobre vaca, um ruminante feito para ruminar capim e outras forragens que o homem não consegue digerir, foi transformada em um animal carnívoro, consumindo alimentos que seu sistema digestivo não tem condições de processar direito, e sendo vitimada por doenças contra as quais não tem defesa. Resultado: a pobre vaca ficou louca.

As que não enlouqueceram, aftosearam. A febre aftosa é uma doença que não mata nem as vacas, quanto mais aos seres humanos. Quem já teve aftas na boca, sabe bem o que é. Um incômodo danado, uma dificuldade enorme em comer, mas um negócio que se cura. O problema das aftas das vacas, ou da febre aftosa, é que ela não é auto-imunizante. A vaca tem, passa para as outras, as outras passam de novo para ela, e assim por diante. Por ser altamente contagiosa, ela se espalha pelo rebanho todo, que para de comer e emagrece. É tratável e prevenível por vacina. Só que...

Tem um "só que". A batalha para salvar os rebanhos da aftosa foi dura, e passou por campanhas maciças de vacinação. Quando uma área ficava livre, a carne vinda desta região passava a ser mais valorizada. Por que? Porque as carcaças das vacas, e muito das sobras de sua carne, também são usadas para fazer ração para alimentar outras vacas. Com isto, um rebanho contaminado pode contaminar outro, geograficamente distante. Evita-se isto como? Vacinando a todos os animais. Só que, vacinando, aceita-se, preliminarmente, que o rebanho "pode estar" contaminado, e o preço da carne cai. Então ninguém quer vacinar, e a epidemia se Espanha.

Vaca louca? Que nada, mundo louco, este, onde as pessoas preferem queimar a vaca inteira (que já foi alimentada com carne de ovelha e vegetais próprios para consumo humano) a vaciná-la. Mundo pirado, onde tanta gente morre de fome, mas a vaca é queimada com todas as suas carnes, sem que estas sejam distribuídas entre os necessitados. Ou alguém acha que mandando carne para a África, por exemplo, carne desossada, iria sobrar algo para virar ração?

Nos países pobres, vaca ainda pasta, e não fica louca nem costuma ter aftosa. Apenas morre de fome, porque as pessoas disputam com ela o pasto. Nos países ricos, é a vaca que disputa a alimentação humana. Em uns e outros, organismos inapropriados para a nova forma alimentar sofrem doenças, epidemias e morte, nas vacas ou nas pessoas.

Vaca louca? Mundo louco!

Moisés, que era Moisés, se insurgiu contra este modelo quando levou os judeus para fora do Egito, há milhares de anos. Proibiu sumariamente o consumo de carne de porco (os judeus tinham grandes varas deles) não por razões sanitárias, como conta o folclore, mas porque os porcos disputavam o mesmo alimento que as pessoas, e ele sabia que em sua peregrinação pelo deserto (onde vagou 40 anos para se livrar de uma geração de escravos e forjar outra de guerreiros) a comida seria escassa. Entre carregar porcos que dividiriam o alimento com os peregrinos antes de virarem, eles mesmos, alimento, ou proibir logo seu consumo, Moisés fez uma coisa que a maioria dos tecnocratas modernos não aprendeu a fazer: calculou o balanço energético do processo, e chegou à conclusão que seria melhor deixar os porcos no Egito.

Era um sábio, coisa rara no mundo de hoje, onde proliferam os tecnocratas loucos, responsáveis, entre outras coisas, pela loucura das pobres vacas.

A força da razão e a razão da força

Inicio este blog atropelado pelos acontecimentos. Por isso, começo aconselhando a todos a leitura de dois textos divulgados neste final de semana pela Ecoagência, agência de notícias ambientais dos ecojornalistas aqui do Rio Grande do Sul. Sugiro que leiam a ambos, mas destaco a necessidade fundamental da leitura do segundo, onde são bem revelados os métodos de ação do atual governo do Rio Grande do Sul na área ambiental.

Mas atenção: que não se culpe apenas a subserviência dos dirigentes máximos dos órgãos. Esta atitude perniciosa desce cadeia de comando abaixo. É só pela cumplicidade dos que temem perder duvidosos privilégios que coisas assim conseguem se tornar realidade.

A FZB (Fundação Zoobotânica) não tem só um presidente, mas também diretores executivos que são as chefias diretamente responsáveis pelos compromissos prioritários a que seus funcionários devem comparecer. Na medida em que estas chefias se eximem, se escondem, ou mudam de posição de acordo com o interlocutor que estão encarando no momento, é preciso muito cuidado para não responsabilizar apenas os extremos: a presidência e/ou os funcionários.

A atual composição diretiva da Zoobotânica é composta por um presidente de origem externa, três diretores também de origem externa e uma diretora (do Museu de Ciências Naturais) do quadro de funcionários da própria Fundação.

Ora, se a representação da FZB no Consema é responsabilidade da equipe técnica da instituição, como consta (pelo menos ainda hoje, 13/04/2008) da própria página da SEMA na internet, e uma vez que o conselheiro que foi impedido de comparecer à reunião é funcionário justamente do Museu, é de se perguntar: que atitude tomou a Diretora do Museu para garantir ao representante de seus colegas o direito (e o dever) de comparecer à reunião? Afinal, trata-se de uma representação técnica, e não política.

Infelizmente, o atual governo rompeu uma tradição que foi mantida desde os tempos da Coordenadoria de Controle do Equilíbrio Ecológico, por sucessivos governadores (Triches, Guazelli, Amaral, Jair Soares, Collares, Britto, Olívio e Rigotto), que foi a de sempre ter nomes ligados à área ambiental em um dos dois principais cargos do sistema. Yeda colocou tanto na secretaria quanto na Fepam nomes ligados à área jurídica do Estado. Manobra hábil, que visava (e que parece ter conseguido) a redução de ações do MP estadual contra atos do governo.

A presidente da FEPAM é uma figura única. Segundo outro texto da Ecoagência, "pouco conhecida até recentemente, a força política e a capacidade de sobrevivência de Ana Pellini já impressionam. Não tem filiação partidária, sua indicação na Fepam é da cota pessoal da governadora, conta ela mesma. Mas atravessou dois governos e três secretários de Segurança como diretora-geral e secretária-adjunta da Secretaria da Segurança Pública (SSP), chegando a assumir como secretária-substituta por diversas vezes. (...)

Desde sua campanha, Yeda garantiu que manteria as papeleiras no Estado, e Ana Pellini recebeu a incumbência de garantir isso. Está cumprindo a missão, às custas de estar sendo chamada de “interventora” do Meio Ambiente e acusada de implantar uma “ditadura militar” no órgão. Por diversas vezes o secretário Otaviano de Moraes e ela estiveram com empresários e representantes do setor, deputados, principalmente. Já as ONGs ambientalistas, na única vez em que conseguiram marcar uma audiência com os dois, ano passado, quando chegaram no prédio da Sema/Fepam foram recebidos apenas por um funcionário de segundo ou terceiro escalão. Sairam todos furiosos."

(...)

Um dos episódio mais comentados envolvendo a presidenta, que revoltou muito as ONGs e técnicos, foi uma intervenção direta dela na Câmara de Biodiversidade e Política Florestal do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). Após várias reuniões, com todos cedendo um pouco, tudo já estava encaminhado para uma proposta única para o zoneamento, de consenso, contam ambientalistas e a geógrafa Isabel Chiappeti, representante da Fepam no órgão.
No entanto, na última reunião da Câmara, dia 18 de março, Ana Pellini apareceu, pela primeira vez, e votou no lugar de Isabel. Junto com os representantes dos empresários – Farsul, Fiergs, Ageflor - e demais órgãos do governo, ela derrubou os pontos considerados mais cruciais para o zoneamento por ONGs e técnicos da Fepam: os percentuais de ocupação de cada Unidade de Paisagem Natural (UPN) com silvicultura, os tamanhos dos maciços de eucalipto e pinus e o distanciamento entre eles.

“Nunca passei por uma situação destas antes, eu me senti constrangida, eu não estava ali sozinha, faço parte de um grupo de técnicos, e o grupo todo de técnicos que vinha discutindo isso se sentiu desrespeitado”, diz a geógrafa, que é servidora há 26 anos da Fepam. A presidenta, contudo, diz que votou no lugar de Isabel porque esta se encontrava ali representando a instituição, por designação dela, Ana Pellini".

A Fepam, por seu histórico, certamente merecia destino e direção melhores, para não citar maior respeito por parte do executivo. É inconcebível que uma detentora de cargo público de chefia não apenas adote atitudes prepotentes como delas se orgulhe. Voltando ao citado texto da Ecoagência, em 08/04, em entrevista por telefone, Pellini confirmou que pressionou pela acelereação dos licenciamentos das papeleiras e para a aprovação do ZAS: “Realmente pressionei, sim, porque chegou um momento em que eu disse que esse zoneamento tinha que desencruar”, declarou, sem rodeios. Segundo ela, “as coisas precisam ter um timing para se resolver e apresentar soluções”. Acrescentou que os licenciamentos e a tramitação do ZAS vinham “demorando exageradamente”. Porém, negou que tenha efetuado perseguições pessoais ou punido alguém: “Não há espaço para represálias no serviço público, as pessoas continuam trabalhando no mesmo setor, sem redução salarial”, afirmou. Houve apenas, segundo ela, a transferência de alguns funcionários “por razões administrativas”, emendou, conforme os princípios da impessoalidade no serviço público: “Só fiz agilizar procedimentos internos, sem prejuizo ao meio ambiente”. (...)

Licenciamento da Aracruz

Uma servidora, porém, relata que três colegas foram transferidos do setor de licenciamento ambiental para o Laboratório da Fepam, de castigo. O único meteorologista da Fepam, Flávio Viezan, e as engenheiras químicas Nádia Boeira e Ieda Maria Cordeiro Osóri da Silva não aceitaram o Estudo de Impacto Ambiental (EIA-Rima) que a Aracruz Celulose apresentou para ampliação da sua fábrica, em Guaíba, e negaram o licenciamento por erros e insuficência de dados.
”Agora estão lá, lavando vidrinhos no laboratório”, afirma essa colega, indignada, pedindo sigilo do nome. O presidente da Associação dos Servidores da Fepam e diretor do Semapi, Antenor Pacheco, confirma as transferências e o motivo relatado. Segundo ele, os três avaliaram o impacto das emissões da fábrica – a poluição do ar que poderia causar – e constataram que o modelo matemático-atmosférico estava errado, o estudo de dispersão dos poluentes incompleto, entre outros problemas.

Que a Fepam é lenta nos processos de licenciamento, ninguém questiona. Mas é lenta porque nunca teve o quadro previsto para que pudesse funcionar bem, com as devidas ampliações devidas ao crescimento da demanda. O atual governo, em vez de melhorar a capacidade técnica e operacional da Fundação, tratou de colocá-la sob tacão. Não aperfeiçoou sua capacidade de trabalho, apenas determinou a agilização na concessão de licenças que fossem de seu interesse. Por razões imaginadas por todos com capacidade de pensamento, apesar disto as ações oriundas do MP estadual andam notavelmente reduzidas, em relação a outros tempos. O estrago ambiental a que está sendo submetido o Rio Grande, graças a esta conjugação de fatores, sói poderá ser bem avaliado no decorrer dos anos. E então, ainda que tardiamente, muitos dos protagonistas deste momento encontrarão seu correto destino na lata do lixo da História. Infelizmente, poderá ser tarde demais.

Em reunião que teria sido realizada no Palácio, não faz muito tempo, enquanto a governadora estava no exterior, um dos dirigentes do setor ambiental teria dito que "está na hora de se fazer na Zoobotânica o que se fez na Fepam". A ser verdade isto, em vez de corrigir o rumo de suas atitudes, o governo estaria radicalizando a prepotência. Espera-se que não, que tal frase, se foi mesmo dita, não tenha passado de um excesso de quem uma vez foi tido como justo e sensato, mas que ao mordiscar um pouquinho deste veneno chamado "poder" acabou sucumbindo a ele às custas do próprio histórico e da antiga dignidade.

Por favor, leia os textos à seguir, principalmente o segundo. Note que nem eu, até aqui, nem a Ecoagência, daqui em diante, traçamos uma única linha sobre a questão em debate, apenas nos restringimos a denunciar o método ditatorial adotado pelos representantes do governo neste mesmo debate.

Perda Total do Estado de Direito


Por Celso Marques*

A decisão do Conselho Estadual do Meio Ambiente (CONSEMA), quarta-feira (09/04), sobre o Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS), foi um ato TOTALITÁRIO imediatista, irresponsável e obscurantista através da qual o atual Governo do Estado está impondo o licenciamento ambiental para a silvicultura na "metade sul do Estado."

Este processo, decisivo para o futuro da nossa campanha, caso não seja disciplinado e normatizado científicamente, comprometerá de 500 mil a um milhão de hectares dos nossos campos nativos em uma geração. Quando isto acontecer os atuais gestores da coisa pública já estarão mortos e não poderão mais ser questionados e responsabilizados.Não poderão testemunhar o pouco que deixaremos para as futuras gerações desta amazônia ao rés do chão que é o Pampa gaúcho.

Estes encaminhamentos desastrosos, lesivos aos nossos interesses, a serviço de um neo-colonialismo disfarçado de progresso, um verdadeiro "modelo chinês de desenvolvimento", está se efetivando através do desvio de função da Secretaria do Meio Ambiente, da desmontagem da FEPAM, órgão licenciador e da manipulação do Conselho Estadual do Meio Ambiente, CONSEMA.

É doloroso ver a perversão destes órgãos ambientais, resultado das lutas dos ecologistas e da sociedade civil gaúcha e brasileira, à revelia da legislação ambiental vigente, conquistada a duras penas nos últimos 37 anos.Os meios de que o governo do estado vem se valendo para impor os interesses das grandes empresas nacionais e estrangeiras do ramo madeira-celulose-papel formam um rosário de irregularidades legais e administrativas. Elas vão desde uma verdadeira intervenção governamental no órgão ambiental do estado, a FEPAM, mudando sucessivamente sua direção; impondo um regime de terror com ameaças aos funcionários e perseguições efetivas aos técnicos que, a bem do serviço público, discordaram das imposições políticas do governo na normatização do setor; até a culminância das irregularidades e atropelos à legislação e à ética que foi o encaminhamento da aprovação do Zoneamento Ambiental da Silvicultura, realizado quarta-feira no Conselho Estadual do Meio Ambiente.

A aprovação do ZAS no CONSEMA deu-se descumprindo escandalosamente um mandado de segurança em vigor, impetrado pela AGAPAN, devido a diversas irregularidades legais em curso e que sustava o poder deliberativo da sessão.

*Celso Marques é professor, membro do Conselheiro Superior da Agapan.


Leia mais:

Conselheiro diz que foi impedido
de comparecer às reuniões do Consema
que aprovaram o ZAS

Porto Alegre, RS – Nas duas reuniões extraordinárias do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema), dias 04 e 09/04, que resultaram na aprovação da proposta do governo para o Zoneamento Ambiental da Silvicultura (ZAS), quarta-feira, chamou a atençaõ a ausência do conselheiro representante da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul (FZB), biólogo Marcelo Duarte.

Ele confirmou, por telefone, os comentários de que foi impedido de comparecer às reuniões.Primeiro, procuramos o presidente da FZB, Luiz Gheller, mas este respondeu por uma assessora que deveria ser entrevistado o próprio Marcelo Duarte. "Tive problemas para sair, me arrumaram outra agenda para cumprir no mesmo horário", disse ele, no final da tarde de quarta-feira. Essa outra agenda, acrescentou, foi uma reunião do grupo de trabalho que prepara o Diagnóstico Ambiental do Estado, a ser encaminhado ao Consema apenas no meio do ano. Nada importante para justificar a ausência dele nas duas reuniões mais decisivas dos últimos anos no órgão máximo da área ambiental no Rio Grande do Sul.

"A decisão não foi minha, cumpri a decisão que me mandaram, de comparecer à reunião do diagnóstico", acrescentou. A ordem, segundo ele, partiu "da direção da casa (FZB), a direção pediu, e eu fui".Na reunião extraodinária anterior, sexta-feira, não arranjaram outro compromisso no mesmo horário, mas também não compareceu por ordem superior: "Na anterior também não fui porque me disseram para não ir", afirmou Marcelo Duarte.

Ele contou, no entanto, que como alternativa foi encaminhado, segunda-feira, ao Conselho um documento dos técnicos da FZB envolvidos com o zoneamento, contendo sugestões para o debate dos demais conselheiros.A Fundação Zoobotânica, até agora, foi o único órgão da área ambiental do Estado onde ainda não foram registradas trocas e transferências de diretores e servidores, mas é muito grande o temor de que comece uma retaliação de parte da Secretaria do Meio Ambiente (Sema) e Fundação Estadual de Proteção Ambierntal (Fepam).

A diretora-presidente da Fepam é acusada de pressionar e intimidar servidores que não concordam com a proposta aprovada.Pedido de Providências ao MPOutra questão importante é que o documento não foi distribuído e nem lido para os demais conselheiros, como deveria acontecer, já que foi entregue no Consema dois dias antes. Quem o recebeu para encaminhá-lo à direção do órgão, consta na via devolvida, foi o secretário-executivo Tiago Castagnetti. O parecer também foi enviado por e-mail, com confirmação de recebimento.

"Vamos solicitar ao Ministério Público para que tome providências para termos acesso a ele. Era um direito nosso termos tido conhecimento deste parecer dos técnicos antes da reunião extraordinária. Se (os conselheiros) ficaram reunidos até as nove horas da noite para aprovação, porque isso não foi lido e discutido?", questionou o biólogo Paulo Brack, professor da Ufrgs e conselheiro do Consema.Temeroso, Marcelo Duarte alegou que não tinha cópia com ele, mas conseguimos com outro servidor da Sema ver o seu conteúdo, que a essa altura já está circulando em mensagens. Tem 16 páginas, com propostas objetivas do corpo técnico da FZB que, segundo um dos autores, não contemplam totalmente as ONGs ambientalistas e nem papeleiras, mas oferecem algum regramento ao plantio de exóticas e permitem o amplo desenvolvimento da silvicultura. (...)

Texto de Ulisses A. Nenê, para a EcoAgência. Reprodução autorizada, citando-se a fonte.